18 de out. de 2010

Sobre perdas - Por Livia Leal




Não tenho mais medo de perder ninguém.

Se já me perdi tantas vezes sem saber, se já achei o que não imaginava conhecer.
Se já me foi tirado o certo, o óbvio e o seguro.
Quantas vezes já dei por mim em cima do muro?
Não tenho mais medo de perder.

Se a própria perda tiraram de mim...
É que não tenho mais medo de chegar ao fim.

Que seja, então, assim...

Todos nasceram para a liberdade, ninguém escapa de se deparar com a verdade
E quando o vento levar tudo o que passa
E já não importar mais o que eu faça
Vou saber de alguma forma e também
Que já não tenho mais medo de perder ninguém.

10 de out. de 2010

Em que esquina dobrei errado? - Por Martha Medeiros

Aconteceu em Paris. Estava sozinha e tinha duas horas livres antes de chamar o táxi que me levaria ao aeroporto, de onde embarcaria de volta para o Brasil. Mala fechada, resolvi gastar esse par de horas caminhando até a Place des Voges, que era perto do hotel. Depois de chuvas torrenciais, fazia sol na minha última manhã na cidade, então Place des Voges, lá vou eu. E fui.

Sem um mapa à mão, tinha certeza de que acertaria o caminho, não era minha primeira vez na cidade. Mas por um desatino do meu senso de orientação, dobrei errado numa esquina. Em vez de ir para a esquerda, entrei à direita. Mais adiante, aí sim, virei à esquerda, mas não encontrei nenhuma referência do que desejava. Segui reto: estaria a Place des Voges logo em frente? Mais umas quadras, esquerda de novo. Gozado, era por aqui, eu pensava. Não que fosse um sacrifício se perder em Paris, mas eu parecia estar mais longe do hotel do que era conveniente. Mais caminhada, e então, várias quadras adiante, não foi a Place des Voges que surgiu, e sim a Place de la Republique. Eu tinha atravessado uns três bairros de Paris, mon Dieu.

Perguntei a um morador o caminho mais curto para voltar à rua onde ficava meu hotel, e ele me apontou um táxi. Teimosa, pensei: ainda tenho um tempinho, voltarei a pé. E assim foram minhas duas últimas horas em Paris, uma estabanada andando às pressas, saltando as poças da noite anterior, olhando aflita para o relógio em vez de flanar como a cidade pede. Cheguei bufando no hotel, peguei minha mala e, por causa da correria, esqueci no hall de entrada uma gravura linda que havia comprado e que planejava trazer em mãos no voo. Tudo por causa de uma esquina que dobrei errado.

Foram apenas duas horas inúteis e cansativas, e duas horas não é nada na vida de ninguém. Mas quanta gente perde a vida que almejou por ter virado numa esquina que não conduzia a lugar algum?

Alguns desacertos pelo caminho fazem a gente perder três anos da nossa juventude, fazem a gente perder uma oportunidade profissional, fazem a gente perder um amor, fazem a gente perder uma chance de evoluir. Por desorientação, vamos parar no lado oposto de onde nos aguardava uma área de conforto, onde encontraríamos pessoas afetivas e uma felicidade não de cinema, mas real. Por sair em desatino sem a humildade de pedir informação a quem conhece bem o trajeto ou de consultar um mapa, gastamos sola de sapato à toa e um tempo que ninguém tem para esbanjar. Se a vida fosse férias em Paris, perder-se poderia resultar apenas numa aventura, mesmo com o risco de o avião partir sem nós. Mas a vida não é férias em Paris, e aí um dia a gente se olha no espelho e enxerga um rosto envelhecido e amargurado, um rosto de quem não realizou o que desejava, não alcançou suas metas, perdeu o rumo: não consegue voltar para o início, para os seus amores, para as suas verdades, para o que deixou pra trás. Não existe GPS que assegure se estamos no caminho certo. Só nos resta prestar mais atenção.

9 de out. de 2010

‘Tudo aquilo que é visível a coração nu’ - Por Livia Leal


Há algumas semanas vi um menino de rua brincando com um cone. Isso mesmo, um daqueles cones laranjas que a gente vê por aí e às vezes é mais respeitado do que gente quando tá no meio da rua. Só sei que vi o menino com aquele cone enfiado na cabeça e dançando de um jeito tão engraçado que esqueci que ele era um menino, que era de rua, que eu era uma menina, que eu estava ali simplesmente voltando pra casa. Me perdi naquele momento de um jeito tão sutilmente envolvente como se um veneno poderoso houvesse me paralisado. Eu estava em sintonia com aquele menino, com aquele instante de dança, de esquecimento, de ligação. Me senti presa àquela cena, era como se eu fizesse parte dela e ela nem desse mundo fosse. Um menino dançando com um cone enterrado na cabeça... Ele era a lei e a anti-lei, era o real e o transcendental, tudo misturado, bagunçado, confuso e apaixonante. E eu estava apaixonada, de coração inexplicavelmente nu.
Quando dei por mim, já era hora de descer do ônibus. Percebi tudo aquilo que era visível a olho nu e que é rapidamente superado. Eu jamais superaria aquele momento, porque foi, era e continua sendo um instante único: o momento em que enxerguei de coração nu aquele menino dançando com o cone na cabeça.
Tudo aquilo que é visível a coração nu permanece, porque somente despido de preconceitos, regras, moralismos e medos o coração pode ver os detalhes que podem dar algum sentido à existência e que tocam sem que sequer sejam percebidos.