18 de dez. de 2014

Amor - Clarice Lispector



Uma vez há muito tempo encontrei numa fila qualquer um amigo e estávamos conversando quando ele se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita. Olhei para trás e vi - da esquina para a gente - um homem vindo com o seu tranquilo cachorro puxado pela correia.

Só que não era cachorro. A atitude toda era de cachorro e a do homem era a de um homem com o seu cão. Este é que não era. Tinha focinho acompridado de quem pode beber em copo fundo, rabo longo, mas duro - e´verdade que poderia ser apenas uma variação individual da raça. Pouco provável no entanto. Meu amigo levantou a hipótese de quati. Mas achei o bicho com muito mais andar de cachorro para ser quati. Ou seria o quati mais resignado e enganado que jamais vi. Enquanto isso o homem calmamente se aproximando. Calmamente não. Havia certa tensão nele. Era uma calma de quem aceitou a luta: seu ar era de um natural desafiador. Não se tratava de um pitoresco: era por coragem que andava em público com o seu estranho bicho. Meu amigo sugeriu a hipótese de outro animal de que na hora não se lembrou o nome. Mas nada me convencia. Só depois entendi que minha atrapalhação não era propriamente minha: vinha de que aquele bicho ele próprio já não sabia o que era, e não podia portanto me transmitir uma imagem nítida.

Até que o homem passou perto. Sem um sorriso, costas duras, altivamente se expondo; não, nunca foi fácil ser julgado pela fila humana que exige mais e mais. Fingia prescindir de admiração ou piedade. Mas cada um de nós reconhece o martírio de quem está´protegendo um sonho.

- Que bicho é esse? - perguntei-lhe e intuitivamente meu tom foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era aquele mas na pergunta o tom talvez incluísse: por que você faz isso? Que carência é essa que faz você inventar um cachorro? E por que não um cachorro mesmo então? Pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir a graça desse bicho senão com uma coleira? Mas você esmaga uma rosa se apertá-la com carinho demais. Sei que o tom é uma unidade indivisível por palavras. Mas estilhaçar o silêncio em palavras é um dos meus modos desajeitados de amar o silêncio. E é quebrando o silêncio que muitas vezes tenho matado o que compreendo. Se bem que - glória a Deus - sei mais silêncio que palavras.

O homem sem parar respondeu curto embora sem aspereza.

E era quati mesmo. Ficamos olhando. Nem meu amigo nem eu sorrimos. Este era o tom e esta era a intuição. Ficamos olhando.

Era um quati que se pensava cachorro. Às vezes com seus gestos de cachorro retinha o passo para cheirar coisas - o que retesava a correia e retinha um pouco o dono na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando aquele quati que não sabia quem era. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: "Mas santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto e latem feroz para mim?" Imagino também que depois de um perfeito dia de cachorro o quati se diga melancólico olhando as estrelas: "Que tenho afinal? Que me falta? Sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio e esta nostalgia? Que ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço?" E o homem - o único a poder de livrá-lo da pergunta - este homem nunca lhe dirá quem ele é para não perdê-lo para sempre.

Penso também na iminência de ódio que há no quati. Ele sente amor e gratidão pelo homem. Mas por dentro não há como a verdade deixar de existir: e o quati só não percebe que o odeia porque está vitalmente confuso.

Mas se ao quati fosse de súbito revelado o mistério de sua verdadeira natureza? Estremeço ao pensar no fatal acaso que fizesse esse quati se deparar com outro quati, e neste reconhecer-se, ao pensar nesse instante em que ele ia sentir o mais feliz pudor que nos é dado: eu... nós... Bem sei que ele teria direito quando soubesse de massacrar o homem com o ódio pelo que de pior um ser pode fazer a outro ser: adulterar-lhe a essência a fim de usá-lo. Eu sou pelo bicho e tomo o partido das vítimas do amor ruim. Mas imploro ao quati que perdoe o homem e que o perdoe com muito amor. Antes de abandoná-lo.

26 de set. de 2014

Não merecer - Autor desconhecido



Contam que uma bela princesa estava procurando um marido. Aristocratas e endinheirados senhores tinham chegado de todos os lugares para oferecer maravilhosos presentes. Jóias, terras, exércitos e tronos estavam entre os agrados para conquistar uma criatura tão especial. Entre os candidatos, se encontrava um jovem plebeu que não tinha mais riquezas do que amor e perseverança. Quando chegou o momento de falar, ele disse: “Princesa, eu a amei toda minha vida. Como sou um homem pobre e não tenho tesouros para lhe dar, ofereço meu sacrifício como prova de amor. Ficarei cem dias sentados sob a sua janela, sem mais alimento do que a água da chuva e sem mais roupas do que as que visto agora. Esse é meu dote”. A princesa comovida por tal gesto de amor, decidiu aceitar: “Você terá a oportunidade; se passar na prova, me desposará”. 

Assim passaram-se as horas e os dias. O pretendente ficou sentado, suportando o vento, a neve e as noites geladas. Sem pestanejar, com os olhos fixos no balcão da amada, o valente vassalo seguiu firme em seu intento, sem desanimar por nenhum momento. De vez em quando, a cortina da janela real deixava transparecer a esbelta figura da princesa, que, com um gesto nobre e um sorriso, aprovava a empreitada.

Tudo ia às mil maravilhas, inclusive alguns otimistas haviam começado a planejar os festejos. Quando chegou o 99° dia, os camponeses da redondeza haviam saído para incentivar o próximo monarca. Tudo era alegria e folguedo até que, de repente, quando faltava uma hora para o prazo terminar, frente ao olhar atônito do público e à perplexidade da infanta, o jovem se levantou e, sem dar explicação alguma, se afastou lentamente do lugar.

 Algumas semanas depois, enquanto perambulava por uma estrada isolada, um garoto do povoado o alcançou e perguntou à queima-roupa: “O que aconteceu? Você estava a um passo de vencer o desafio, por que perdeu essa oportunidade, por que se retirou?” Muito consternado e com algumas lágrimas mal disfarçadas, respondeu em voz baixa: “Ela não me poupou de nem um dia de sofrimento, sequer de uma hora… Não merecia o meu amor”.

27 de ago. de 2014

Kafka e os Estudos - Martha Medeiros



Fui uma aluna, digamos, razoável. Tirava notas boas, passava quase sempre por média, mas era desinteressada. Estudava o suficiente para passar de ano, mas não aprendia de verdade. Bastava alcançar as notas que me aprovariam para, instantaneamente, tudo o que havia sido decorado evaporar da minha cabeça. Não tenho orgulho algum em contar isso, me arrependo bastante de não ter prestado atenção pra valer nas aulas e de não saber mais sobre história, em especial. Mas foi assim. E só fui compreender as razões deste meu desligamento agora, ao ler "Cartas ao pai", de Franz Kafka.

Nesta carta (editada pela coleção de bolso da L&PM), ele a certa altura admite que estudou mas não aprendeu nada, apesar de sua memória mediana e de uma capacidade de compreensão que não era das piores. Considerava lastimável o que lhe havia ficado em termos de conhecimento. Disse mais ainda, e nisso exagerou: que seus anos na escola haviam sido um desperdício de tempo e dinheiro.

Não é pra tanto, estudar nunca é um desperdício, mas quando li esta confissão audaciosa eu quis saber mais. Por que isso, afinal? A justificativa: ele sempre teve uma preocupação profunda com a afirmação espiritual da sua existência, a tal ponto que todo o resto lhe era indiferente.

Há em "afirmação espiritual da existência" solenidade demais para descrever a menina que fui, mas era mais ou menos assim que a coisa se dava. O que eu queria aprender de verdade não passava nem perto do quadro-negro. O que me interessava - e interessa até hoje - eram as relações humanas, e tudo de mágico e de trágico que elas representavam numa vida. No caso, a minha vida.

Entre os 7 e os 17 anos, eu tinha urgência em estudar o caminho mais curto para ser amada. A escola era como um país estrangeiro. Pela primeira vez eu não estava em casa, nem em segurança. Tinha que aprender como fazer amizades e mantê-las, como demonstrar emoções sem me fragilizar, como enfrentar agressões sem cair em prantos, como explicar todas as minhas idéias sem me contradizer, como ser honesta e ao mesmo tempo não ofender os colegas, e nisso gastei infindáveis manhãs e tardes prestando atenção em mim e nos outros - pouco nas lições.

Havia um pátio, havia um bar, havia um portão fechado, havia os banheiros e a biblioteca, e tudo era desafiador. Eu tinha que descobrir em mim a coragem para quebrar certas regras, fumar escondido, namorar. Ficava muito atenta às diferenças entre sabedoria e hierarquia: não era possível que os professores estivessem sempre certos e os alunos, errados. E as matérias me pareciam tão inúteis... Matemática, química e física me eram desnecessárias, eu queria saber sobre teatro, música, filosofia, psicologia, sexo, paixão, eu queria entender o que me fazia ficar zangada ou em êxtase, eu queria aprender mais sobre melancolia, desespero, solidão, eu tinha especial atração pelas guerras familiares e pelas mentiras que sustentam a sociedade, eu queria ter conhecimento sobre ironia, ter domínio sobre o pensamento, entender por que alguns gostavam de mim e outros me esnobavam, lutar contra o que me angustiava. Inocente, queria saber como se fazia para ter certezas. Eu, que tirava nota máxima em bom comportamento, precisava urgentemente que me explicassem o que fazer com o resto de mim, com aquilo que eu não usufruía, a parte errada do meu ser.

"Afirmação espiritual da existência". Da escola saí faz tempo, mas nunca parei de me estudar. E Kafka, quem diria, acabou dando um bom professor.



Crônica extraída do livro Coisas da Vida, de Martha Medeiros

7 de jul. de 2014

O que os outros vão pensar? - Martha Medeiros

"Quando eu era pequena não tinha medo nenhum de bicho-papão, mula-sem-cabeça ou de bruxa malvada. Quem me aterrorizava era outro tipo de monstro. Eles atacavam em bando. Chamavam-se os outros. 

Nada podia ser mais danoso que os outros. As crianças acordavam de manhã já pensando neles. Quer dizer, as crianças não: as mamães. Era com os outros que elas nos ameaçavam caso não nos comportássemos direito. Se não estudássemos, os outros nos chamariam de burros. Se não fôssemos amigos de toda a classe, os outros nos apelidariam de bicho-do-mato. Se não emprestássemos nossos brinquedos, os outros nunca mais brincariam conosco. E o pior é que as mães não mantinham a lógica do seu pensamento. 'Mas mãe, todo mundo dorme na casa dos amigos!' Eu lá quero saber dos outros? Só me interessa você! Era de pirar a cabeça de qualquer um. Não víamos a hora de crescer para nos vermos livres daquela perseguição. 

Veio a adolescência, e que desespero: descobrimos que os outros estavam mais fortes do que nunca, ávidos por liquidar com nossa reputação. 

'Você vai na festa com esta calça toda furada? O que os outros vão dizer?' 

'Filha minha não viaja sozinha com o namorado, não vou deixar que vire comentário na boca dos outros’, dizia a mãe de minha namorada. 

Não tinha escapatória: aos poucos fomos descobrindo que os outros habitavam o planeta inteiro, estavam de olho em todas as nossas ações, prontos para criticar nossas atitudes e ferrar com nossa felicidade. 

Hoje eles já não nos assustam tanto. Passamos por poucas e boas e, no final das contas, a opinião deles não mudou o rumo da nossa história. Mas ninguém em sã consciência pode se considerar totalmente indiferente a eles. Os outros ainda dizem horrores de nós. Ainda têm o poder de nos etiquetar, de nos estigmatizar. A gente bem que tenta não levá-los a sério, mas sempre que bate uma vontade de entregar os pontos ou de chorar no meio de uma discussão, pensamos: Não vou dar este gostinho para os outros. 

Está para existir monstro mais funesto do que aquele que poda nossa liberdade."

1 de jul. de 2014

Pregos - Martha Medeiros




Foi de repente. Dois quadros que tenho na parede da sala despencaram juntos. Ninguém os havia tocado, nenhuma ventania naquele dia, nenhuma obra no prédio, nenhuma rachadura. Simplesmente cairam, depois de terem permanecidos seis anos inertes. Não consegui admitir essa gratuidade, fiquei procurando uma razão para a queda, havia de ter uma.

Poucos dias depois, numa dessas coincidências que não se explicam estava lendo um livro do italiano Alessandro Baricco, chamado novecentos, em que ele descrevia exatamente a mesma situação: "no silêncio mais absoluto, com tudo imóvel ao seu redor, nem sequer uma mosca se movendo, eles, zás. Não há uma causa. Por que precisamente nesse instante? Não se sabe. Zás. O que ocorre a um prego para que decida que já não pode mais?".

Alessandro Baricco, não procurava desvendar esse mistério, apenas diz que assim é. Um belo dia a gente se olha no espelho e descobre que está velho. A gente acorda de manhã e descobre que não ama mais a uma pessoa. Um avião passa no céu e a gente descobre que não pode ficar parado onde está nem mais um minuto. Zás. Nossos pregos já não nos seguram.

Costumamos chamar essa sensação de "cair a ficha", mas acho bem mais poética e avassaladora a analogia com os quadros na parede. Cair a ficha é se dar conta. Deixar cair os quadros é um pouco mais que isso. É perder a resistência, é reconhecer que há algo que já não podemos suportar. Não precisa ser necessariamente uma carga negativa, pode ser uma carga positiva, mas que nos obriga a solicitar mais força dentro de nós.

Nascemos, ficamos em pé, crescemos e a partir daí começamos a sustentar nossas inquietações, nossos desejos inconfessos, algum sofrimento silencioso e a enormidade de nossa paciência. Nossos pregos são feitos de material maciço, mas nunca se sabe quanto peso eles podem aguentar. O quanto podemos conosco? Uma boa definição de felicidade: Ser leve para si mesmo.

Sobre os meus quadros: foram recolocados na parede. Estão novamente fixos no mesmo lugar. Até que eles, ou eu, sejamos definitivamente vencidos pelo cansaço.

19 de jun. de 2014

A esperança é um ato de resistência. Resista.




"Você que de quando em vez chora à noitinha, na solidão da alcova. Você que se arrebenta no cumprimento das obrigações. Que perde um tempo danado desviando das porradas de todo dia.

Você que tem medo do arrependimento um minuto depois de tomar uma decisão. Você que esconde seu pavor de morrer só, de não ter onde cair morto, de lhe faltar um gato para puxar pelo rabo.

Você que ainda tem avós mas que pouco os vê. Que tem saudade da infância, que sente culpa por não telefonar mais seguido a seus pais. Você que já não tem pais e nem avós e quase só usa o telefone para pedir comida e responder que não, não quer assinar jornal nenhum.

Você que tem uma inveja inofensiva das pessoas que demonstram afeto. Você que queria ter mais irmãos, você que tem irmãos distantes, você que não tem irmão nenhum.

Você que ainda corta a carne no prato do filho ou da filha. Que tem criança pequena e conhece o medo doloroso de lhe faltar.

O universo que me perdoe, mas o tempo podia passar mais lento
Você que se deu conta de que nunca será um astronauta, um campeão olímpico, um astro do rock. Que acha superficial e sínico quem defende que não se deve dar esmolas, quando a quem pede esmolas nada se faz para ajudá-lo a seguir outro caminho.
Você que olhou nos olhos de um mendigo e sentiu um calafrio em algum lugar insuspeitado da alma.

Você que sentiu culpa por estar ocupado demais para ouvir um amigo quando ele mais honestamente precisou falar.

Você que já passou horas deitado no sofá de barriga para baixo, cutucando com a unha a sujeira leve que pousa e se instala impertinente nas ranhuras do chão. Você que enxerga rostos nos desenhos dos ladrilhos. Que observou a poeira flutuando contra a luz do sol e lembrou de um amor antigo. Você que não sabe lidar com um amor novo.

Você que, no mais das vezes, das conversas do dia a dia não ouve nada senão relinchos, cacarejos e conversas para boi dormir entupidas de preconceito e burrice.

Você que já se perguntou onde repousam as borboletas, enquanto imaginava sua vida secreta, e esse foi seu único instante de paz no dia confuso. Você que descobriu espantado que as baratas, quando esmagadas pelo chinelo da gente, liberam ovos que se transformarão em novas baratas que sobreviverão à hecatombe nuclear.

Você que já pediu a Deus um tempo para viajar a um lugar distante e ver o sol nascer de outro canto, na tentativa honesta de lavar com sabão e esponja a sua alma cheia de borras e sentimentos esverdeados, envelhecidos. Depois estendê-la no varal de um dia inteiro e deixá-la ali secando ao sol.

Você que já teve a impressão de que, se não fizer alguma coisa, a vida periga se transformar em um eterno domingo à noite.

Você…

Seja bem-vindo. Bem-vinda. Dá cá um abraço. Viver dói e se dói é porque você vive. Resista, deixe estar.

E acredite: para cada angústia há uma desforra gloriosa, esperando sua vez de vir ao mundo."


Fonte: Revista Bula

6 de jun. de 2014

Loucura é fundamental - Por Livia Leal

Prefiro ser louca a ser cínica. Ouso optar por continuar me espantando com o que está ao avesso, com o que rouba os nossos sonhos e é capaz de tirar o brilho do nosso olhar. Arrisco a me rebelar contra a palavra que julga, contra o gesto que oprime, contra o medo que cala e contra a conformação irresponsável. Quando se vive em um mundo em que se culpabiliza a vítima e se absolve o ladrão, corre-se o risco de naturalizar o sofrimento e de legitimar a própria violência. Então, acabamos nos tornando cínicos, viramos expectadores da dor, e, ainda que com boa dose de empatia, normalizamos o que nos desumaniza. E aí o sonho se torna sinônimo de ingenuidade, o espanto se transforma em covardia, e o sentimento passa a representar fraqueza. Em um mundo em que os dons são negligenciados e as virtudes são ridicularizadas, ficamos sujeitos ao “tanto faz”, ao “é só mais um”, enfim, à indiferença. Tem faltado imaginação, espontaneidade, e tem sobrado receio e calculismo. Tornou-se normal ter o dinheiro como única motivação, calar frente a um ato de injustiça, terceirizar a responsabilidade pela construção de um mundo mais fraterno. 

Se for assim, que me perdoem os cínicos, mas loucura é fundamental.