19 de jun. de 2014

A esperança é um ato de resistência. Resista.




"Você que de quando em vez chora à noitinha, na solidão da alcova. Você que se arrebenta no cumprimento das obrigações. Que perde um tempo danado desviando das porradas de todo dia.

Você que tem medo do arrependimento um minuto depois de tomar uma decisão. Você que esconde seu pavor de morrer só, de não ter onde cair morto, de lhe faltar um gato para puxar pelo rabo.

Você que ainda tem avós mas que pouco os vê. Que tem saudade da infância, que sente culpa por não telefonar mais seguido a seus pais. Você que já não tem pais e nem avós e quase só usa o telefone para pedir comida e responder que não, não quer assinar jornal nenhum.

Você que tem uma inveja inofensiva das pessoas que demonstram afeto. Você que queria ter mais irmãos, você que tem irmãos distantes, você que não tem irmão nenhum.

Você que ainda corta a carne no prato do filho ou da filha. Que tem criança pequena e conhece o medo doloroso de lhe faltar.

O universo que me perdoe, mas o tempo podia passar mais lento
Você que se deu conta de que nunca será um astronauta, um campeão olímpico, um astro do rock. Que acha superficial e sínico quem defende que não se deve dar esmolas, quando a quem pede esmolas nada se faz para ajudá-lo a seguir outro caminho.
Você que olhou nos olhos de um mendigo e sentiu um calafrio em algum lugar insuspeitado da alma.

Você que sentiu culpa por estar ocupado demais para ouvir um amigo quando ele mais honestamente precisou falar.

Você que já passou horas deitado no sofá de barriga para baixo, cutucando com a unha a sujeira leve que pousa e se instala impertinente nas ranhuras do chão. Você que enxerga rostos nos desenhos dos ladrilhos. Que observou a poeira flutuando contra a luz do sol e lembrou de um amor antigo. Você que não sabe lidar com um amor novo.

Você que, no mais das vezes, das conversas do dia a dia não ouve nada senão relinchos, cacarejos e conversas para boi dormir entupidas de preconceito e burrice.

Você que já se perguntou onde repousam as borboletas, enquanto imaginava sua vida secreta, e esse foi seu único instante de paz no dia confuso. Você que descobriu espantado que as baratas, quando esmagadas pelo chinelo da gente, liberam ovos que se transformarão em novas baratas que sobreviverão à hecatombe nuclear.

Você que já pediu a Deus um tempo para viajar a um lugar distante e ver o sol nascer de outro canto, na tentativa honesta de lavar com sabão e esponja a sua alma cheia de borras e sentimentos esverdeados, envelhecidos. Depois estendê-la no varal de um dia inteiro e deixá-la ali secando ao sol.

Você que já teve a impressão de que, se não fizer alguma coisa, a vida periga se transformar em um eterno domingo à noite.

Você…

Seja bem-vindo. Bem-vinda. Dá cá um abraço. Viver dói e se dói é porque você vive. Resista, deixe estar.

E acredite: para cada angústia há uma desforra gloriosa, esperando sua vez de vir ao mundo."


Fonte: Revista Bula

6 de jun. de 2014

Loucura é fundamental - Por Livia Leal

Prefiro ser louca a ser cínica. Ouso optar por continuar me espantando com o que está ao avesso, com o que rouba os nossos sonhos e é capaz de tirar o brilho do nosso olhar. Arrisco a me rebelar contra a palavra que julga, contra o gesto que oprime, contra o medo que cala e contra a conformação irresponsável. Quando se vive em um mundo em que se culpabiliza a vítima e se absolve o ladrão, corre-se o risco de naturalizar o sofrimento e de legitimar a própria violência. Então, acabamos nos tornando cínicos, viramos expectadores da dor, e, ainda que com boa dose de empatia, normalizamos o que nos desumaniza. E aí o sonho se torna sinônimo de ingenuidade, o espanto se transforma em covardia, e o sentimento passa a representar fraqueza. Em um mundo em que os dons são negligenciados e as virtudes são ridicularizadas, ficamos sujeitos ao “tanto faz”, ao “é só mais um”, enfim, à indiferença. Tem faltado imaginação, espontaneidade, e tem sobrado receio e calculismo. Tornou-se normal ter o dinheiro como única motivação, calar frente a um ato de injustiça, terceirizar a responsabilidade pela construção de um mundo mais fraterno. 

Se for assim, que me perdoem os cínicos, mas loucura é fundamental.