15 de jan. de 2015

Nem o plano cobre – Por Livia Leal [1]

Muitos pobres têm problema de pressão. Não é tão impressionante assim. O pobre acorda às 4h da manhã, prepara o café da manhã dos filhos e os respectivos lanches, os arruma para a creche/escola, deixa os filhos no colégio, corre para não perder o ônibus, leva quase 2h no trajeto até o trabalho (isso se o transporte público colaborar), normalmente é o primeiro empregado a chegar, trabalha todo o dia, leva mais 2h no ônibus/metrô/trem lotado para retornar, pega as crianças na escola, prepara o jantar, arruma a casa, dá banho nos filhos, dedica algum tempo a eles, os coloca para dormir, até chegar o momento de deitar para, no dia seguinte, retomar a mesma rotina desgastante de todos os dias, que pode se estender aos sábados e domingos, dependendo do ofício. No fim do mês, o que restou do pagamento das contas é destinado à realização das compras do mês e a algum momento de lazer com os filhos. Haja pressão para aguentar essa rotina, para batalhar para dar uma educação aos filhos, para provar que, com suor e dedicação, se pode ter uma vida digna.

Esses são os pobres que conheço. Imaginários não são os problemas de saúde; são os pobres criados pela Silvia Pilz.

Mas já que estamos falando de pobres, nada mais justo do que falar da pobreza. Há, de fato, a pobreza financeira, ocasionada por questões históricas e sociais, por uma má distribuição de renda, por uma sociedade em que a diversidade econômica é conveniente para alguns e mantida por um sistema que se consolidou. Mas há um outro tipo de pobreza, essa mais democrática: aquela que se reflete no preconceito, que se prende a generalizações, que inferioriza o outro ou debocha de sua condição. Os pobres desta modalidade não conseguem superar estigmatizações, ficam presos no próprio ego ou ilhados em um mundo que tem o dinheiro e o poder como protagonistas e são incapazes de refletir criticamente sobre a realidade que os envolve.

Essa pobreza, muitas vezes, vem fantasiada de senso comum, de humor, e até mesmo de liberdade de expressão. E o remédio contra essa pobreza, a pobreza de espírito, cara Silvia Pilz, infelizmente, nem o plano de saúde cobre.


[1] Esse texto é uma resposta ao artigo “O Plano Cobre”, da colunista Silvia Pilz, publicado em “O Globo”. Veja o texto: http://oglobo.globo.com/…/20…/01/13/o-plano-cobre-558602.asp

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