31 de mar. de 2010

Temos que ser líquidos




Ainda lembro das noites em que ele passou em claro porque eu estava passando mal. Ainda lembro de quando ele me pegava nos braços e me fazia dormir em seu colo. É impossível esquecer meu pai. Um homem simples, sem muitas elegâncias. Mas um homem. Um homem de verdade. Olhar para o meu pai era ver o perfil de homem que considero justo. Um homem que, mesmo humilde, guardava uma riqueza imensa dentro de si e que, querendo ou não, espalhava essa riqueza por onde passava. No caso de meu pai, dividir era multiplicar. Com ele não tinha tempo ruim, chuvas tempestuosas demais ou chances de desistência. Aos onze anos tive a prova disso.
Ao quase perdê-lo, eu vi o que até então não tinha percebido: meu pai era um herói. E eu era uma adolescente no auge da rebeldia, com idéias revolucionárias, querendo quebrar as regras e fazer o meu mundo do meu próprio jeito. E foi então que tive a maior lição da minha vida. Não sei bem se ele mesmo percebeu o posterior efeito dessas palavras, mas o que ele dissera foi um marco na minha história.
Eu tinha todas as idéias supostamente inovadoras e inconseqüentes da adolescência e acabava entrando em atrito com a Livia que eu queria ser e a Livia que o mundo pedia que eu fosse. E meu pai foi uma peça extremamente importante nisso. Certa vez ele me dissera:
- Livia, na vida nós temos que ser líquidos. Por exemplo, a água: se eu a coloco em um copo, ela assume a forma do copo, mas se eu a colocar em uma jarra, ela ficará do formato da jarra. E é assim com a gente. Nós temos que nos adaptar. Mas não podemos ser tão volúveis quanto os gases e nem tão rígidos quanto os sólidos.
E foi assim que eu aprendi a viver. Me adaptei facilmente à doutrina militar, à uma posterior rotina mais desgastante. Descobri que eu poderia revolucionar sim, mas de uma maneira mais líquida. Não adianta querer mudanças radicais, e também não devemos ficar alienados. Devemos absorver as informações e observar o mundo, aprendendo com tudo e com todos. Com meu pai, aprendi a não discriminar. Ele me ensinou a ser líquido. E foi assim que me tornei quem sou hoje.
Nos meus dezessete anos de existência, tive que fazer escolhas muito importantes e, graças ao meu pai (juntamente com a minha mãe), pude avaliar os melhores caminhos. Aprendi a ter flexibilidade e, o mais importante de tudo: despertei a bondade que havia dentro de mim. E tudo por causa de gestos, de pequenos detalhes que às vezes passam despercebidos no dia-a-dia. O que sou é o reflexo dos pequenos atos de meus pais que me serviram de exemplo. O que me tornei é fruto da convivência com esses dois anjos que guiam o meu caminho.
Talvez quando ele me disse para ser líquido não imaginava a repercussão que isso teria para mim. Mas foi com ele que aprendi as maiores lições da minha vida. Com ele, eu aprendi a ser eu mesma e aprendi a aceitar quem a outra pessoa é. Aprendi com meu pai que a vida não é nada fácil, mas quando se tem amor e bondade, sempre há uma nova chance. E é assim que eu encaro cada amanhecer: como um conselho sensato de meu pai, como a esperança e a bondade que vejo em seu olhar. E cada anoitecer é como um beijo de boa noite, embalado ao som de Roberto Carlos: “eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer...”.

Por Livia Teixeira Leal.
Dedicado ao meu grande exemplo, meu pai.

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